quinta-feira, 31 outubro(38)99114-1908

Foi-se um Leão…

Foi com imenso pesar que tomei conhecimento do falecimento do estimado Dr. Caio Leão Gomes, ilustre advogado que tive o privilégio de conhecer, no ano de 1999, logo que cheguei em Espinosa, minha primeira comarca como Promotor de Justiça.

Me lembro bem que havia sessão de julgamento designada para o mês de junho, com três processos de homicídio na pauta, tratando um deles de um crime passional, onde o marido, num acesso violento de ciúme, matara a companheira esfaqueando-a pelas costas à beira do fogão enquanto cozinhava.

O advogado contratado para fazer a defesa desse acusado era o Dr. Caio e foi o primeiro embate que tivemos perante o Tribunal do Povo. Na ocasião, como era aquela sessão era a minha estreia no júri, preparei-me com afinco estudando cada vírgula dos autos do processo. Li e reli teses acusatórias de autores famosos que poderiam ser sustentadas perante o corpo de jurados.

No dia do julgamento, esforcei-me perante os juízes do povo, os ilustres espinosenses que compunham o conselho de sentença, a aceitar os argumentos da promotoria sobre a dignidade da vida, impossível de ser retirada por quem quer que fosse, bem como sustentei com todas as minhas forças que ‘quem ama não mata’, símbolo maior da ascensão do feminismo do Brasil, notadamente quando do segundo julgamento do assassino de Ângela Diniz, o famoso playboy ‘Doca Street’, nos anos 1980.

Naquele dia, feita a minha peroração, cheia de linguagem jurídica, fruto da formação universitária que nos empurra a pensar que somente a técnica deve ser usada no mundo do Direito, foi a vez de ‘entrar em campo’ o meu ex adverso, Dr. Caio Leão Gomes.

Fazendo jus ao sobrenome felino realizou uma sustentação oral que me inspirou para o resto da vida profissional. Ao invés da linguagem técnicojurídica, aquela que usei para tentar fazer a convicção dos jurados pender para a condenação, o experiente advogado, com vigor e eloquência dignas dos maiores tribunos que já via atuar, viajou pela literatura clássica universal citando Shakespeare e sua obra Otelo para mostrar as deformações do espírito humano diante de um ciúme doentio, lembrou fatos famosos emoldurados na memória do Poder Judiciário como as condenações injustas dos acusados pelas mortes dos irmãos Naves, em Araguari, no ano de 1937, bem como a conspiração farsesca envolvendo o ‘Capitão Dreyfus’, militar francês acusado injustamente de vender segredos de Estado para integrantes do império alemão em 1894, encerrando a sua peroração lendo a sentença que condenou Jesus Cristo à morte de cruz.

No final das contas, o júri, naquela ocasião, para a minha perplexidade da, absolveu o assassino. Recorri da absolvição e, confesso, não soube o desfecho do meu inconformismo junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais porque acabei sendo promovido antes do julgamento do recurso.

Lembrei-me desse episódio para enaltecer a figura do falecido Dr. Caio, um gigante que me ensinou, ainda que involuntariamente, a ver o direito não como mera técnica, mas como uma ciência que exige do seu operador conhecimentos multidisciplinares, especialmente aqueles extraídos da literatura clássica, dos livros de História e até da Bíblica Sagrada.

Dr. Caio foi um Leão na Tribuna do Júri e será sempre lembrado por mim de forma reverente por isso e também porque, por sua iniciativa, quando Presidente da Câmara de Vereadores, foi o autor do projeto que me concedeu o título de Cidadão Honorário de Espinosa, honraria que fica estampada no meu gabinete da Promotoria de Justiça e que me tornou ainda mais filho dessa terra que tanto amo.

Leonardo da Vinci, um dos grandes homens do Renascimento, alertava: ‘que o teu trabalho seja perfeito para que, mesmo depois da tua morte, ele permaneça’. O trabalho do nosso amigo falecido nos salões do tribunal do júri de toda a região Norte de Minas Gerais foi grande, gigantesco mesmo, e permanecerá, mesmo depois do seu passamento, na memória de quem teve o privilégio de apreciá-lo (me incluo entre os privilegiados).

 Descanse em paz, Dr. Caio, serei eternamente grato pelas lições que você, mesmo sem saber, sempre me deu.

 

Dr. Flávio Márcio Lopes Pinheiro

Promotor de Justiça e coordenador do GAECO (Grupo Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado).

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